quarta-feira, 23 de março de 2011

GUERRAS ULTRAMARINAS - 50 ANOS


Guerras Ultramarinas - 50 anos

MEMÓRIAS DA GUERRA ULTRAMARINA – 50 ANOS
A tragédia que anunciou o fim do Império ultramarino chegou em 4 de Fevereiro de 1961 a Luanda. A Casa de Reclusão Militar, a Cadeia de São Paulo e a 4ª Esquadra da PSP, foram atacadas por grupos de insurrectos que as assaltaram. A refrega sangrenta deu sete polícias e algumas dezenas de bandoleiros mortos. Foi uma madrugada de raiva que se anunciava por causa dos conflitos laborais com os trabalhadores
produtores de algodão na Baixa do Cassange. A agitação na cidade de Luanda era perceptível desde que as autoridades portuguesas começaram a prender os cabecilhas da revolta contra a empresa Cotonang, que quis obrigar os agricultores a cultivar o algodão a preços mais reduzidos. O sossego em Luanda terminou abruptamente. No dia do funeral dos polícias, e nos dias que se seguiram, a população branca avançou contra as populações dos muceques e abateu centenas de negros. Foi o atiçar do ódio que se veio a espalhar pelas terras do norte de Angola, a partir do dia 15 de Março de 1961. Este dia ficará na memória de muitas famílias de colonos como o mais trágico acontecimento no norte de Angola. As atrocidades foram tão violentas e dramáticas que ninguém podia ficar indiferente à quantidade de vítimas, entre as quais, muitas mulheres e crianças esventradas.  
Os primeiros militares intervenientes, que resistiram ao tempo, têm gravado na memória os dramáticos acontecimentos ocorridos durante as missões que os levaram até aos confins daquele vasto território. As picadas cortadas com abatises ou valas profundas demoravam muitos dias a percorrer; o inimigo astuto, escondido entre o capim, aproveitava para atacar nos locais mais complicados para a defesa; as chuvas provocavam lamaçais de difícil progressão; o apoio aéreo, muito escasso, era um factor de preocupação permanente no socorro e evacuação aos feridos. Estes eram os principais obstáculos que os bravos soldados portugueses tiveram de enfrentar, até se conseguir estabilizar a ocupação das localidades vandalizadas, o que demorou cerca de cinco meses.
Nos primeiros tempos da guerra, os combatentes dos reduzidos efectivos militares tiveram que se esforçar até aos limites das suas capacidades humanas para socorrer as populações isoladas nos locais mais desprotegidos das povoações da região afectada pelos bandoleiros. Depois das atrocidades dos primeiros dias, os que escaparam, fugiram para outros locais na busca de protecção; muitas das vezes, acabaram por cair nas mãos dos sanguinários da UPA (União das Populações de Angola), que os mutilaram, deceparam e mataram.
As tropas mais activas e bem preparadas estavam a braços na contenção da revolta dos camponeses do Cassange e nas buscas aos muceques de Luanda. As companhias de Caçadores Especiais avançaram na reconquista das picadas e povoações dos Dembos, tendo sido a 6ª companhia que mais se notabilizou a dizimar tudo que era preto, com o Alferes Fernando Robles a destacar-se na guerra do “olho por olho, dente por dente”; a sua acção na reconquista do terreno da UPA ficou marcada por numerosas baixas entre mortos e feridos. A 5ª companhia andou a bater a zona do Caxito e Úcua, com recurso ao sistema da psico-social para acolhimento das populações, mas bastante repressivo para com os negros acusados de serem infiltrados da UPA.
Para socorrer os colonos e populações atacadas pelos bandoleiros, destacaram-se os grupos de Pára-quedistas organizados em secções, com especial relevo para a defesa das povoações de 31 de Janeiro, Damba, Maquela do Zombo, Sacandica, Quibocolo, Bungo, Songo, Mucaba, Lucunga e outras onde foram necessárias acções rápidas e eficazes. Destacaram-se alguns elementos mais ousados, entre eles, o Alferes Mota da Costa, os Tenentes Veríssimo e Mansilha, o sargento Santiago, os soldados Eugénio Dias e Pimentel. No decorrer das primeiras missões, morreram em combate o Alferes Mota da Costa, o soldado Domingos e o cabo Almeida Cunha (este por não se ter aberto o pára-quedas ao saltar sobre a serra da Canda).
Para avançar com mais força para a reconquista das terras tomadas pela UPA, foram mobilizados os Batalhões de Caçadores 96 e 114 e o Esquadrão de Cavalaria 149, para a reconquista de Nambuangongo (santuário das forças da UPA), com o custo de várias dezenas de mortos e centenas de feridos. A Força Aérea foi conquistando os céus do norte de Angola à medida que foram sendo activadas pistas nas povoações; as condições logísticas e materiais permitiram apoiar os Pára-quedistas nas grandes operações de reconquista de Quipedro, Serra da Canda, Sacandica e Inga, locais de difícil acesso por terra.


Ainda no tempo da reconquista e ocupação de posições no terreno, o Manuel Joaquim da Rocha Bastos, pertencente à Companhia de Caçadores 168 do BCaç159, relatou duas situações bem complicadas no “baptismo de guerra”:
- “Quando a companhia seguia de Catete para a fazenda Maria Teresa, sofremos uma forte emboscada, com tiros vindos do meio do capim; o combate foi prolongado e a reacção obrigou à retirada do inimigo, mas atingiu um companheiro que não resistiu e morreu. O comandante da força entendeu que os bandoleiros não deviam ficar sem resposta adequada e pediu reforços ao Batalhão; com mais um pelotão, desencadeou uma batida por toda a zona e durante dois dias limpámos tudo que nos parecesse bandido. Mais tarde, instalados em Quipedro, não nos deram sossego durante quatro meses, havia semanas em que os ataques eram diários, o que nem permitia a aproximação e aterragem das avionetas para reabastecer ou levar o correio. Tivemos alguns confrontos directos com os bandoleiros, pois chegaram ao ponto de nos desafiar para fora do arame farpado e na zona onde aterravam os aviões.”

A guerra durou treze longos e dolorosos anos, por ela passaram mais de um milhão de combatentes, que deram o seu melhor ao serviço duma causa que pouco lhes dizia. Serviram a Pátria que juraram defender, independentemente de ideologias ou de sofismas. Dos cerca de 10.000 mortos, mais de 1.700 ficaram lá abandonados em cemitérios espalhados pelos mais distantes locais. A guerra deixou mais de 30.000 deficientes; muitos outros regressaram com graves sequelas no corpo e na alma, com as quais vivem os dramas dos traumas e das doenças que lhes tolhem a vida. Mas a grande maioria desses homens souberam manter intacta a dignidade dos bons portugueses, mesmo quando os governantes os desprezam e ostracizam. Foram estes oitocentos mil que, sem qualquer apoio ou reconhecimento pelo serviço prestado à Pátria, se instalaram nas mais diversas actividades produtivas, investindo os seus conhecimentos e dinheiros ao serviço de Portugal. Foi tal o desprezo e a humilhação manifestada pelos poderes públicos que alguns milhares acabaram por seguir o rumo da emigração. A persistência das Associações de Combatentes permitiu que o Estado começasse a prestar alguma ajuda aos antigos combatentes mais necessitados; especialmente a Associação Portuguesa dos Veteranos de Guerra tem prestado valioso apoio médico e logístico, além dos projectos que estão em curso para construção de estruturas capazes de alojar os que vivem mais isolados e carenciados; é um trabalho meritório que devemos apoiar com brio e convicção, mas estaremos atentos aos protagonistas indesejáveis.

Como disse há algum tempo, num debate público sobre a aferição dos valores que equilibram uma sociedade racional, mantenho a opinião de que a questão dos heróis sempre incomodou os cobardes e os acomodados. Seja no combate para defesa da Pátria, seja no combate aos fogos ou nas missões de salvamento das populações atingidas por flagelos e tempestades. A questão é mais pertinente quando ouvimos dizer e lemos comentários a tentar distorcer esses valores, referindo que os que desertaram foram mais corajosos do que os que foram para a guerra; que os cobardes são aqueles que aceitaram ir combater nas terras ultramarinas. Os valores da solidariedade, da colaboração, da defesa dos princípios democráticos e da paz não dependem de ideologias ou de regimes políticos; aceitam-se, defendem-se e praticam-se. Não há meias tintas; ou se é bom cidadão ou não. Os marginais, os parasitas, os cobardes e os traidores são nocivos à sociedade; uns porque são criminosos, outros são acomodados; é preciso reagir, ser solidário e produtivo. São esses arautos do laxismo e do facilitismo que degradam os valores que devem balizar a aquisição dos conhecimentos necessários ao desempenho com competência, saber e respeito. 
Sabemos que já lá vão 50 anos e o assunto das guerras ultramarinas não é tema recorrente nas escolas; o que é vergonhoso para a história de um país que deixou centenas de pessoas desenraizadas ou traumatizadas para o resto das suas vidas. Todos devem merecer respeito pelos anos passados em situações de perigo, sofrimento e privações de toda a ordem; uns aguentaram e foram valentes, outros fraquejaram e continuam a sofrer. Ainda somos muitos com direito de voto democrático, saberemos usá-lo com sentido do dever cumprido.
Joaquim Coelho - combatentes em Angola, por convicção; em Moçambique,
por imposição. 
(Publicado na revista "O Veterano de Guerra" da APVG)


Editada também para  "A GUERRA NÃO ACABA PARA QUEM SE BATEU EM  COMBATE"

por Joaquim Coelho - combatentes em Angola, por convicção; em Moçambique,
por imposição. 

GUERRAS ULTRAMARINAS - OPINIÕES


Guerras Ultramarinas - Opiniões

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GUERRAS ULTRAMARINAS - OPINIÕES

A questão das guerras ultramarinas tem merecido uma avalanche de opiniões e comentários cujos autores mais parecem mixordeiros a atirar lama para cima das muitas centenas de milhares de combatentes que cumpriram, o melhor que puderam e souberam, os seus deveres patrióticos. Alguns dos comentadores e contadores  de estórias chegam a resvalar para o ridículo das narrativas abstractas conjecturando cenários jamais imaginados. O que lemos e ouvimos são incongruências desfasadas da realidade que muitos viveram naquele tempo. Custa-me acreditar que os homens, com graves responsabilidades nas acções brutais de repressão e chacina aquando dos acontecimentos da revolta na Baixa do Cassange, tenham a veleidade de vir para a praça pública tentar justificar os excessos cometidos pelos seus comandados. Seria mais razoável que essa gente se recolhesse no silêncio, resguardando no esquecimento os seus actos selvagens. 




Ao longo dos tempos, muitos dos intervenientes nas primeiras operações de guerra (caçadores especiais, polícias, pára-quedistas, especialistas da Força Aérea) que comigo conviveram ou convivem, manifestam cautela e incomodam-se quando vem à tona alguma referência a esse período negro do tempo das operações militares em Angola.
Os crimes cometidos contra as populações trabalhadoras, que as autoridades desprezaram em favor dos exploradores da Cotonang (empresa de capitais maioritariamente belgas), são monstruosos e irreparáveis. A administração portuguesa determinou o aniquilamento de muitos milhares de agricultores que a Cotonang escravizava. Para isso, usou as armas da polícia e dos militares mal preparados para acções de policiamento, enquanto a Força Aérea bombardeou e arrasou aldeias inteiras. Os mais conscientes tentaram conter a brutalidade das acções repressivas, mas cedo perceberam a sua incapacidade para suster a máquina destrutiva.
Na tentativa de silenciar aqueles que pudessem testemunhar para o mundo tamanha chacina, as autoridades nomearam “grupos especiais” para fazer buscas de casa em casa e “caçar” os presumíveis “cabecilhas” dos revoltosos. Numa dessas vergonhosas missões de “assassinatos” selectivos, o próprio comandante do grupo recusou estar presente no acto de fuzilamento sumário. Ainda hoje, alguns dos intervenientes numa acção de fuzilamento, levada a cabo na Gabela, não entendem como foi possível a tropa portuguesa, que se presume civilizada, chegar ao ponto de praticar actos de tamanha crueldade.




Depois, veja-se o que fizeram as autoridades policiais e militares, bem como os colonos brancos nos muceques de Luanda, a partir do dia dos funerais dos sete polícias vítimas dos assaltos na noite de 4 de Fevereiro de 1961 – foi uma autêntica caça ao “bandido” com muitos milhares de sevícias e assassinatos. Os ódios foram atiçados e a resposta selvagem não tardou. Dizer que o Salazar estava avisado da preparação das atrocidades contra os brancos e negros bailundos era pura fantasia. O que se passou teve tamanha dimensão e foi tão macabro que ninguém imaginou tal hecatombe. Não venham, agora, os adivinhas do costume tentar justificar o que quer que seja. Meus caros, não há desculpas para tanta crueldade e chacinas a sangue frio, como aconteceu na Baixa do Cassange, nos últimos meses de 1960, nos muceques de Luanda, em Fevereiro e no norte de Angola, a partir da noite de 15 de Março de 1961.


Dos exemplos de incongruências, temos os actos de “bravura” do alferes Fernando Robles, da 6ª companhia de Caçadores Especiais, que não são mais do que desmandos por lhe ter sido dada liberdade para matar indiscriminadamente as populações indígenas. A loucura foi tal que o levou a descorar as regras elementares de precaução e deixou que o inimigo causasse dezenas de baixas entre os seus homens, quando progredia em zona infestada de bakongos instrumentalizados para estripar e esquartejar seres humanos. Provavelmente, a sua experiência na Baixa do Cassange, contra populações desarmadas, o tenha deslumbrado ao ponto de tamanha leviandade. A crueldade não justificou as chacinas nem os ódios que se tornaram intoleráveis. As consequências foram dramáticas, mas ninguém poderia saber o que esperava as populações das roças do café e das povoações das terras do norte de Angola. A ideia de que Salazar poderia saber dos planos para o massacre de 15 de Março de 1961 só pode ser falaciosa e mostra quanto de ignorância anda na cabeça de muitos escribas que pretendem deformar a história. 
Tenhamos respeito pelos mortos e estropiados, bem como pelos desenraizados que o ambiente de guerra mutilou no corpo e na alma. O sofrimento e as angústias dos soldados e dos familiares deve merecer a mais alta estima da nação. Deixemos que a história faça o seu percurso serenamente e acreditemos que ainda há escribas honestos e livres para fazer o seu trabalho com competência.

Joaquim Coelho – combatente, em Angola por convicção, e em Moçambique, por imposição.


Capitão Mendonça da 6ª CCaçEspeciais
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