quinta-feira, 29 de agosto de 2013

estórias de lá... "GUINÉ" VEM COMIGO COMER AMENDOIM

- Toma lá é para ti !... E comecei a consultar a pilha de livros que uma pessoa que me é querida, me disponibilizava. E lá comecei, volume a volume a consultar os títulos até que, como que sopesando me saltou o título "VEM COMIGO COMER AMENDOIM":   ADÃO CRUZ  1994
O casal que ilustra a capa "nada" tem a ver com título , atrevi me a folhear  e só na quarta página.  Em tipo de letra bem explicito:
VEM COMIGO
COMER AMENDOIM

ADÃO CRUZ

DESENHOS DE MANUEL CRUZ

mais uma página a quinta (5) e, no topo do lado esquerdo:

a meus filhos
e aos filhos dos negros,
que nascem brancos

Da  pagina 7 até à 15  e com o titulo IN LIMINE o autor num misto de prosa e verso diverge por uma escrita que nos transparece a catarse a uma quase "penitência":
(...) Por isso este livro.
Este dizer de negros e brancos e brancos e negros.
Uma mão-cheia de estórias de lá e de cá.
Uma mão cheia de coisas simples (..)

Corri as páginas até perto do final, e:
O livro tinha a ver comigo embora noutra latitude com outra patente e outras incumbências aí estava o "povo da Guiné" e o nosso Alferes Médico, em 1967, mostrando o menino de seu nome, ADÃO DOUTOR em virtude de o ter assistido no parto ao lado da simpática mãe, que em sinal de agradecimento o baptizou com tão pomposo nome
Espreitei o Índice ( pag 171 ( que neste tipo de obras muito pessoais é sempre importante ) e transcrevo:
Cadi.................................................................... 19
O diagnóstico....................................................... 31
Os Prisioneiros..................................................... 41
Abibe Tal............................................................. 51
Guiné-Irkutsk....................................................... 61
Nunca na vida te deixarei sozinho..........................69
A transparência...................................................  81
O tanque.............................................................  89
O buraco na rede................................................. 99
O parto...............................................................109
Morte Pontual.....................................................123
O Franc..............................................................133
Terra e Poesia.....................................................141
O Paquete.......................................................... 149
O Mendigo..........................................................157
Escolhi entre os variados e não menos interessantes e sugestivos capítulos para partilhar com os meus amigos: na pagina 89
O Tanque

O alferes Almeida foi meu companheiro de quarto em Begene, no norte da Guiné, se é que podemos chamar quarto ao alpendre onde dormíamos.
Cerca de oito anos mais novo que eu,  o Almeidinha fez-se meu amigo de verdade.
Amigo desde o acampamento da  Fonte da Telha, do quartel de Porto Brandão e da Amadora.

Embarcamos para a Guiné no velho Uíge, empurrados pelo magnífico patriotismo de Salazar, entalados entre o belo gesto das senhoras do movimento nacional feminino e o malabarístico safanço dos filhos e patriotas da situação.
Embalados pelas ondas do mar da Mauritânia e sossegados pelas ricas ementas flamejantes do cozinheiro de bordo. demos à costa da Guiné no dia 13 de Maio de 1966.
O Alferes Almeida e eu, pertencíamos à mesma Companhia.
Eu como Médico e ele como atirador, comandante de pelotão.
Nos primeiros tempos da nossa comissão na guerra da Guiné, estivemos separados.
Fui destacado para Canquelifá, perto da fronteira da República da Guiné-Conacry.
Ele esteve de intervenção durante algum tempo.
Quando a Companhia se fixou em Begene já eu lá me encontrava.
Um avião fora buscar-me a Canquelifá para vir prestar assistência à última Companhia de farda branca que em breve regressaria à metrópole, sendo substituída por aquela em que estávamos integrados.
De novo juntos, o Alferes Almeida e eu, programamos o nosso futuro no sentido de transformar os dias quentes e incertos que se anteviam, nos melhores dias da nossa vida.
Outra coisa não era de esperar do seu espírito folgazão e irrequieto, da sua grande alma de vinte anos.
E vivemos juntos acontecimentos fabulosos.
Ele era todo patriota, à sua maneira.
Cascava nos colonos a cuja família pertencia, e gramava bestialmente os pretos.
Mas soberania era soberania, e por isso ali estava para a defender. Ele lia na altura Morreram pela Pátria de Mikail Cholokow.
Eu lia Os Condenados da Terra de Frantz Fanon, que ele dizia ser a minha bíblia de anticolonialista subversivo.
Penso, no entanto, que poucas pessoas gostaram tanto de mim como aquele moço.
Ajudou-me, quase sem querer a conhecer as gentes e os costumes da Guine, e contribuiu de forma sublime, ainda que um tanto inconsciente, para o maravilhoso entendimento do internacionalismo, do anti-racismo e solidariedade entre os povos.
Julgo que se ele tivesse vivido até a fim da comissão deixaria de chamar turras aos guerrilheiros que o mataram.
Foi num dia em que eu me sentia muito triste.
O Almeida procurou animar-me, lembrando-me o chuveiro que havíamos inventado a partir de um bidon e de um ralo de regador, e que borrifava sobre nós mais belos minutos do dia.
Desta vez um tanque que construímos com uns restos de cimento encontrados numa arrecadação, e que iria proporcionar-nos, apesar da sua estreiteza de três metros por um, algumas belas banhocas.
A inauguração estava marcada para esse dia e o Almeida, atrevido, imprudente e um tanto irresponsável, já se tinha deslocado a sózinho a Barro para arranjar galinha que servisse de manjar no festejo.
Barro era um pequena aldeia nativa a onze quilómetros de distância, onde a Companhia mantinha um pelotão.
Toda a picada estava minada e as emboscadas eram constantes.
Mas a galinha estava do lado de cá.

A meio da madrugada o Almeida acordou-me:
-  Já que não vens comigo fazer a patrulha, meu cobardesito de merda, fazes um bom xabéu com essa galinha, para mereceres o mergulhe no tanque.
Eu respondi-lhe:
- Tem mas é juizinho nessa bola, não te armes em herói, senão nem a galinha comes.
- Cobarde, um cobardesito é o que tu és, retorquiu sorridente, com um aceno amigo que nunca mais haveria de fazer.
Eram dez horas da manhã quando a nossa velha GMC irrompeu pela cerca de arame farpado, em correria demasiada para o seu velho e gasto motor, como se ela própria sentisse  tragédia que transportava no bojo: o corpo do Alferes Almeida, crivado de balas dos pés à cabeça.
Puxei de um cigarro mas não consegui segurá-lo entre os dedos.
E nunca tomei banho no tanque.
                                                   
Vem comigo comer amendoim
vem comigo vem
sonhar um sonho
que não tem fim


P.S. Foi gratificante ler e ver o livro do Adão Cruz.  Caso o descubram por aí numa livraria, alfarrabista ou então lhe apareça "não se sabe bem como", folheie e depois mergulhe nas suas sentidas e interessantes leituras "dos nossos dias de missão".



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